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sexta-feira, 20 de maio de 2011



“NÓIS MUDEMO

O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, todo poesia e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal ... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?

-É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos, tá?
- Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.

-Pai, não vô mais pra escola!
- Oxente! Modi quê? Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Ai me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lucio -Lucio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
- É, professora, meu fio não aguentou as gozações da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis nao tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é moço?
- A senhora não se lernbra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de
sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.

- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço . Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lucio -Lucio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanta é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.

- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
- Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem f1echas vingadoras apontadas
para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Super usada, mal usada, abusada, ela e uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna -a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas -e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os Lucios da vida, os milhares de Lucios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não e assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."


Fidêncio Bogo


COMENTÁRIO:

Olá pessoal, considero bem interessante postar esse texto para vocês, pois nós faz refletir das nossas ações  na pratica docente.Esse texto traz a realidade da sala de aula em que os alunos são marginalizados devido aos próprios professores , pois estes não conseguem identificar as variedades da língua e nem se conscientizar eles próprios nem os seus alunos. Espero que vocês gostem dessa leitura. 




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